Pular para o conteúdo principal

Resistência do amor em tempos sombrios

Terceiro e último livro de uma trilogia que a escritora gaúcha iniciou com A casa das sete mulheres, o volume Travessia encerra a Trilogia Farroupilha com um personagem que, no dizer da autora, é comum a toda a história: Garibaldi, este carismático personagem que aparece no início do primeiro livro, quando principia um amor platônico com a meiga Manuela, a filha do Bento Gonçalves. Mas como já acompanhamos nos volumes anteriores, a família da moça não compactua com o romance, impedindo, pois, o contato de ambos.
Se no primeiro livro a escritora se atém a contar a história da família concomitante à Revolução Farroupilha, tendo como cenário a Estância da Barra, a casa na qual ficaram 7 mulheres da família de Bento Gonçalves, no segundo volume já temos como plano histórico a Guerra do Paraguai, além de mudar a perspectiva para o romance de Giuseppe e Anita, a mulher atemporal que provoca uma paixão no general e guerreiro italiano. Ana Maria de Jesus Ribeiro, ou Anita, sempre dava um jeito de acompanhar Garibaldi em suas empreitadas bélicas, mesmo diante dos perigos dessa vida.
O volume levou mais de 10 anos para ser concluído e motivou a autora a fazer uma pesquisa ampla sobre o período histórico a ser descrito. Em cada livro, podemos perceber que as histórias se passam em meio a uma batalha: Revolução Farroupilha, Guerra do Paraguai e as que foram vividas por Garibaldi e Anita. Assim, foram quase 16 anos de trabalho da escritora gaúcha, convivendo com os personagens criados e com as intensas lutas históricas do período da narrativa.

O desfecho da trilogia tem 546 páginas que nos envolve por possuir muitas batalhas, intrigas políticas, fatos históricos, mas fugindo desse didatismo, a escritora também coloca romance de uma maneira incrível, sem pieguice, mas cada vez mais próximo do que podemos imaginar para os personagens históricos.
Se nos volumes anteriores a história era narrada por mulheres, neste terceiro volume uma das perspectivas narrativas é feita pelo próprio Giuseppe. Aqui, por exemplo, saberemos mais detalhes de sua história com a corajosa Anita, que pregava uma igualdade de gênero em tempos tão sombrios, lutou num tempo em que o espaço era predominantemente masculino e viril, uma mulher que em meados do século XIX já era um exemplo de empoderamento feminino, requerendo a sua posição enquanto mulher.
A precursora Anita já havia largado um casamento no qual se vira obrigada pela família a seguir, pois diante da fome existente, o casamento aos 14 anos acabou sendo uma saída. Vulnerável e corajosa, mas também conhecida por sua bravura, Anita iria ser determinante para alguns sucessos e insucessos da vida do homem por quem ela se apaixonara, afinal, seu fim se dará numa fuga ao lado do marido. Foi nas primeiras batalhas que o casal se conheceu, em Montevidéu, no Uruguai, quando Garibaldi lutou no Cerco de Rosas. A partir de então, nasce entre os dois um amor que irá dar forças a ambos seguirem na luta.
Encanta, pois, a maneira como o casal se conheceu. A Revolução Farroupilha já estava em seu quarto ano, em 1939. Já que o romance com Manuela não havia evoluído, Garibaldi dedicou-se à construção de barcos que serviriam para a travessia dos Farroupilhas rumo à conquista da República Juliana. Em um desses barcos ele vê Ana Maria de Jesus Ribeiro, a bela Anita, que na casa de seu tio esperava notícias do seu marido, partícipe da Guerra, mas ao lado dos imperialistas. Como ela não sabia notícias dele (se vivo ou morto), já que ele havia fugido junto com os demais soldados imperiais, ao ver o já conhecido herói Garibaldi a sua frente, Anita ficou deslumbrada, entregou seu coração, deixou a casa com o tio e resolveu acompanhar aquele que seria o verdadeiro homem de sua vida até sua morte, aos 27 anos.

Dividido entre fatos acontecidos (aqueles narrados) com os personagens e ao que é narrado no presente, ou seja, em fevereiro de 1850, período no qual Giuseppe Garibaldi já se encontra no exílio, em Tânger (cidade nortista de Marrocos). Mas a narrativa também contém a perspectiva de Anita, que um pouco diferente da visão de Garibaldi, dá à narrativa menos cansaço e mais emotividade. Sua voz narrativa se faz presente até depois de sua morte.
Em Tânger, longe da Itália que o renegou, Garibaldi, aos 44 anos, conta as dores sofridas no passado: o afastamento da família, o distanciamento dos filhos e o doloroso abandono de sua amada Anita às margens do mar Adriático. Assim, não é de espantar que algumas atitudes dos personagens nos deixem perplexos ou decepcionados mesmo, pois enquanto nos dois primeiros volumes da trilogia temos um Garibaldi mais romantizado, algumas de suas decisões aqui causam surpresa, apresentando as fraquezas e realçando as qualidades dos protagonistas.
Nesta nova narrativa da saga, somos informados, por exemplo, de que os anos mais felizes do casal foi o período em que estiveram em Laguna, tempo em que ela o acompanhou nas obrigações militares. Desta época, passando pela gravidez de Anita, as traições, bombardeios da Guerra do Paraguai, as lutas nas quais ela mesmo grávida participou, o exílio de Garibaldi e a morte de Anita ao tentar acompanhar Garibaldi, o livro não ameniza o drama, mas também não o torna enternecido exageradamente.
 
De forma geral, Travessia não é o melhor livro da trilogia, mas certamente fecha-a muito bem, com uma história comovente e surpreendente. Semelhante aos demais, tem guerras, romance, melancolia, morte, mas sobretudo vida e sentimento. A impressão que dá é que esta tenha sido a receita repetida nos três, mas neste as tintas foram mais fortes.
Com o novo design de capa, as novas edições dos três livros embelezam qualquer estante. Como já foi dito, a convite da própria escritora, o artista plástico Chico Baldini criou gravuras para a capa que definitivamente a tornaram mais vivas diante de tanta morte na narrativa.


CURIOSIDADES E OUTROS LINKS:

  • ·         Anita foi homenageada tanto no Brasil quanto na Itália. Seu nome está inscrito no Livro dos Heróis da Pátria, depositado no Panteão da Liberdade e da Democracia, em Brasília.
  • ·         Aqui no blog da Editora Record tem uma entrevista com a autora.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

[Curiosidades] Xingamentos em um português culto

Se é pra xingar, vamos xingar com um português sofisticado. Aqui neste post você vai ler algumas palavras mais cultas e pouco usadas quando se quer proferir uma série de palavrões onde a criatura não entende patavina nenhuma. Antes, porém, de você aprender algumas palavrinhas, conheça esta historieta: Diz a lenda que Rui Barbosa, ao chegar em casa, ouviu um barulho estranho vindo do seu quintal. Chegando lá, constatou haver um ladrão tentando levar seus patos de criação. Aproximou-se vagarosamente do indivíduo e, surpreendendo-o ao tentar pular o muro com seus amados patos, disse-lhe:  - Oh, bucéfalo anácrono!Não o interpelo pelo valor intrínseco dos bípedes palmípedes, mas sim pelo ato vil e sorrateiro de profanares o recôndito da minha habitação, levando meus ovíparos à sorrelfa e à socapa. Se fazes isso por necessidade, transijo; mas se é para zombares da minha elevada prosopopéia de cidadão digno e honrado, dar-te-ei com minha bengala fosfórica bem no alto da tua sinagoga, e o

De Clarice Lispector para Tania Kaufmann

Conforme eu tinha anunciado ha meses, o blog Papos Literários divulgará com frequência uma série de cartas famosas do mundo da literatura ou da música. Hoje trago na íntegra a carta de uma das escritoras mais queiridinhas dos brasileiros, além de ser famigerada nestes tempos de facebook ee twitter. Confira a f amosa carta de Clarice para a sua irmã Tania Kaufmann. Clarice em sua árdua tarefa de escrever _____________________________________________ A Tania Kaufmann Berna, 6 janeiro 1948 Minha florzinha, Recebi sua carta desse estranho Bucsky, datada de 30 de dezembro. Como fiquei contente, minha irmãzinha, com certas frases suas. Não diga porém: descobri que ainda há certas frases suas. Não diga porém: descobri que ainda há muita coisa viva em mim. Mas não, minha querida ! Você está toda viva! Somente você tem levado uma vida irracional, uma vida que não parece com você. Tania, não pense que a pessoa tem tanta força assim a ponto de levar qualquer espécie de vida e continuar