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Sobre a dilacerante fome


Autor de uma gigantesca obra que mescla reflexão com ficção, Martín Caparrós, jornalista argentino, empreende uma obra que se torne ícone para nossos tempos atuais. Esta obra é A Fome (El hambre, Tradução de Luis carlos Cabral, Editora Bertrand Brasil, 714 páginas, R$69,90), onde ele escreve, reescreve, demonstra sua visão crítica e cética com relação alguns fatos deste mundo que muitas vezes é cruel. 
 


Inicialmente temos as constatações e observações de um jornalista, a visão de um profissional que não observa a distância os fatos, mas propõe um debate, uma reflexão no leitor, apontando origem, razões e prováveis soluções para o problema da fome em todo o mundo. Mas por que existe fome, essa estranha palavra também chamada de hambruna? Suscintamente, Caparrós responde: “Existe fome, porque há milhões em situação de pobreza extrema. A primeira questã
o deriva de uma série de fatores, a segunda dos seus efeitos”.

O autor também revela a visão que tende um pouco à antropologia, uma vez que ele não deixa de ressaltar a natureza humana e abranger suas dimensões em suas múltiplas totalidades. Caparrós torna-nos ouvintes em suas inúmeras entrevistas realizadas, dá voz aos famintos, aos agonizantes, expõe os horrores que levam os pobres ao extremo estado animalesco, tal como um gato que come pelo chão. É uma narrativa visceral, angustiante, penosa e muito, muito dolorosa, onde por meio das interações e entrevistas que o autor proporciona na leitura, percebemos como inúmeras pessoas, sem perspectivas de vida tentam viver resignadas, contando um pouco sustento: uma água fervend
o com galhos de árvore, bolinhas feitas com pasta de milho. 
Livro A Fome
Dando voz aos que não a tem, Caparrós desperta em nós, leitores, muitas vezes meros observadores da tragédia produto do capitalismo. A exposição de corpos famintos na televisão choca, as imagens estampadas em jornais e revistas emudece, mas as descrições do livro de Caparrós estão carregadas de sofrimento que nos deixa indignados, arrepiados e despertos. Não dá para ficarmos apenas sentado na poltrona lendo ou assistindo sobre. O autor também, de modo, implícito, incita-nos à assistência.

Assim, o autor contextualiza a fome da América à Ásia, da África ao Oriente Médio para falar que a fome existe na Nigéria, no Sudão do Sul, no Estados Unidos da América, na Índia, na Argentina e outros países. Não importa o lugar, a sensação é a mesma: fome. Transitando entre ermas aldeias, lixões, comunidades longínquas e remotas a fim de analisar esta epidemia, Caparrós traz-nos uma realidade política não tão desconhecida assim, mas contraditória. Ela não é intrínseca aos países mais pobres. Não é uma questão geográfica, histórica ou climática, como apontam as tabelas de excel de pesquisas ou estudos. É uma epidemia que convive até mesmo com os mais desenvolvidos. É sobretudo nos meios de maior riqueza onde há, na base piramidal, os pobres, os quais necessitam serem recolocados na sociedade como seres humanos, onde sua dignidade humana não seja ferida.

Para comprovar que essa questão é mais política que estruturalmente geográfica, Caparrós conecta os relatos de pessoas aos estudos geográficos, análises geopolíticas, pesquisas acadêmicas e histórias a fim de desmitificar falácias sobre a fome, uma vez que o autor denuncia e apresenta saídas possíveis para a fome. Assim, o autor enfatiza que as formas de governo têm propiciado essa política de exploração: “Governar é explorar a ignorância comum para explorar a sua própria”.

Caparrós empreende uma investigação que objetiva identificar os culpados (ou menos culpados), assim como também apresenta quem são os famintos. Estes, o autor apresenta muito bem. Àqueles, o autor dá um lugar de culpa: desperdício de alimentos, excesso de capitais nas mãos de poucos, má gestão de economia e programas de governo e ainda a posição religiosa.

São 3 milhões o número de crianças que morrem de fome ou doenças e ela relacionadas. Caparrós indica que ocorrem 25 mil mortes por dia em todo o mundo. São números assustadores que nos convidam à reflexão sobre o fato de estarmos agora, talvez, nos alimentando em quando dezenas de pessoas morrem de fome.

Excelente obra de referência, o livro A Fome dá-nos um tapa na cara e nos mostra que o mundo é tão mais difícil de entender quanto imaginamos: inanição, pessoas que morrem por terem-lhe negado o direito de viver, de comer e dados estatísticos que nos convencem que nem a guerra matou mais gente que a fome.

Não é um livro indicado para qualquer leitor. O livro de Caparrós exige de nós empatia, mas também nos cobra força para ler uma página e mesmo assim, depois de ter lido dores e ter imaginado mortes, continuar as páginas seguintes até culminar num fim que não é feliz. É um livro indicado para estudos, consultas e àqueles que desejam propor um debate acerca do assunto. 
 

 
A editora Bertrand Brasil imprimiu na capa uma foto que exprime tanta, mas tanta compaixão que não imaginamos que a descrição das imagens é bem pior que a foto. Neste caso, o ditado não é conveniente: mais valem as 700 páginas do que uma imagem.
 
 
 
 
Sobre o autor:
Martín Caparrós nasceu em Buenos Aires, em 1957, formou-se em História em Paris, viveu em Madri e Nova York, dirigiu revistas literárias e de culinária, percorreu meio mundo, traduziu Voltaire, Shakespeare e Quevedo. Ganhou prêmios Planeta Latinoamérica, Rei da Espanha, Herralde de Romance e uma bolsa da Fundação Guggenheim. É autor de cerca de trinta livros.

Leia um trecho do livro aqui.


Fontes:
http://ionline.sapo.pt/509399
https://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/a-fome-nao-sao-so-os-outros-1731408 
El Pais
http://www1.folha.uol.com.br/livrariadafolha/2016/07/1791832-livro-traz-resultado-de-investigacao-jornalistica-sobre-a-fome-no-mundo.shtml

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