Pular para o conteúdo principal

[Contos Urbanos] No escritório (Parte 1)

Atenção.
Para melhor compreensão deste conto, leia Prelúdio dessa história está aqui.

__________________________

No escritório

Ao chegar em casa com o volumoso livro que acabara de comprar, seu Benedito afastou de cima da mesa alguns papeis, colocou a publicação antiquíssima cuidadosamente entre panos e escreveu alguma coisa numa caderneta.
Ligou para o jornal local e ditou o aviso que redigira.

“Procura-se um jovem leitor que disponha de tempo para dedicar horas à leitura do livro Crime e Castigo para um senhor idoso e debilitado. Por favor, os interessados procurem o senhor Benedito na rua Donalsdon, número 835”

Tão rápido o aviso foi posto no jornal local, como tão rápido foi a chegada do primeiro candidato ao posto de leitor. Era inédito naquela pacata cidade alguém ser pago para ler. Mas como veremos, não era por prazer que o jovem leria para o ancião...

- Bom dia, Sr. Benedito. Chamo-me Arthur. Vi o aviso no jornal que o senhor...
- Oh. Você é o primeiro rapaz que aparece. Está mesmo com muita vontade de ler, hein?
- haha. Sim. A propósito, onde está o livro? Quando quer começar a escutar a história do Raskólnikov? Onde acha melhor, aqui na sala, no escritório...
- Calma, meu jovem. Calma. Ainda preciso fazer com você um teste. Preciso saber qual o seu ritmo de leitura, a sua tonalidade. O que acha?
- Ah, sim. É conveniente. Vamos lá, então.

No escritório, enquanto fazia o teste, Arhur realizava uma análise atenta do seu interior, olhou atentamente a escadaria, os móveis antigos, a escrivaninha e as estantes preenchidas por edições e coleções de livros velhos que ocupavam boa parte do cômodo. Em seu pensamento, Arthur calculava quanto o velhinho já gastara em livros e fazia também os seus planos, caso fosse ocontratado.

- Bem, como estou apressado para conhecer a história e você não tem problemas ao ler, será você mesmo o contratado.
- Fico feliz por ter me selecionado mesmo sem conhecer os futuros candidatos.
- Gostei de sua disposição, meu jovem.

Não estaria o Sr. Benedito sendo muito precipitado em contratar o primeiro interessado? Por que não esperar mais algum tempo para analisar os perdidos candidatos ao cargo de leitor de Crime e castigo? Seu Benedito viu em Arthur algo que poderia ajudá-lo a cumprir seu objetivo. E era por isso que ele contratou tão rapidamente o jovem de apenas 22 anos.

- Então, até amanhã, Ar... Arthemi...
- Arthur!
- Ah, sim. É Arthur! Bem. Espero-lhe amanhã às 8:00 para tomarmos café e começarmos a leitura.
- Será um prazer. Até amanhã, seu Benedito.

Nesta mesma manhã, corria pela cidadela boatos do inédito aviso posto no jornal. Houve aqueles que acharam curioso alguém contratar uma pessoa para ler um livro. Outros já acharam a iniciativa positiva e já pensavam também em negociar com alguém para fazer companhia junto a um parente já esquecido ou ainda para aqueles que na solidão precisam estar junto de uma pessoa. E o livro, era claro, a melhor companhia.

- Que absurdo! Um jovem como Arthur receber um dinheirão do velhote somente para ler um livro?! Logo ele, que nunca quis nada na vida, nem na escola. Como seu Benedito ousou assalariar aquele malandro? – Dizia um passante na rua para seu acompanhante.
- Decerto ele não conhece a índole do rapaz, ora. – Respondia o outro.
- Pois alguém tem que avisá-lo a tempo. Arthur tem artimanhas. Não é a toa que ele foi o primeiro a responder o aviso do jornal. – Continuava o passante.
- Deixe disso! Pode ser que Arthur realmente esteja querendo compensar suas malandragens com um pouco de bondade lendo para o seu Benedito.
- Se Benedito Richeliou fosse pobre, eu acreditaria. Mas sabendo de sua riqueza e dos atos praticados por aquele rapaz, eu não tenho tanta certeza disso.

Em poucas horas, a cidade estava em burburinhos com o acontecido. Cidade pequena, povinho levado a comentar sobre a vida alheia até que alguém ligou para a mansão Richeliou e lembrou seu Bendito sobre o comportamento do rapaz.

- Não se preocupe. Eu agradeço pelo seu interesse em me avisar ou me prevenir. Mas eu sei o que estou fazendo. Acredito que a leitura pode transformar as pessoas. Vamos dar uma chance pra ele. – Respondeu seu Benedito, que após desligar o telefone, sentou-se na poltrona, pôs-se a massagear o livro e refletir sobre seus planos...

Aos 68 anos, Benedito tinha a esperteza do mundo e tinha consciência dos seus atos, pois ele, assim como Arthur, também tinha planos. Planos que poderiam definir o futuro dos dois, mas um deles de forma trágica.


(Não perca na  próxima crônica urbana: "No escritório - Parte 2" )

Comentários

  1. Uau, que legal! Um blog que posta crônicas! Apesar de ser contraditório, se pensar bem, mal se vê esse gênero difundido pela internet. Há mais resenhas, poemas, pequenas mensagens de reflexão. Que saudade de uma crônica genuína!

    ResponderExcluir
  2. THIAGOOOOO como eu adoro essa história do Benendito! Ficou muito legal, deixou um clima de suspense e mistério que me corrói. Cadê o próximo número?!
    bjão!

    ResponderExcluir
  3. Muito bom! Sabe quando você começa a ler um texto, mas sem muitas expectativas? Somente pra passar o tempo e quando vê, já era, se sente envolvido pela história ao ponto de ficar triste por ter acabado? Acabou de acontecer comigo! Simplesmente incrível, acho que nem é necessário avisar que já estou seguindo o blog e aguardando ansioso pelos próximos capitulos haha

    Abraços,
    Vitor Dutra http://maredelivros.blogspot.com

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Oi. Grato pela visita. Sinta-se convidado a voltar sempre. Abraços.

Postagens mais visitadas deste blog

[Curiosidades] Xingamentos em um português culto

Se é pra xingar, vamos xingar com um português sofisticado. Aqui neste post você vai ler algumas palavras mais cultas e pouco usadas quando se quer proferir uma série de palavrões onde a criatura não entende patavina nenhuma. Antes, porém, de você aprender algumas palavrinhas, conheça esta historieta: Diz a lenda que Rui Barbosa, ao chegar em casa, ouviu um barulho estranho vindo do seu quintal. Chegando lá, constatou haver um ladrão tentando levar seus patos de criação. Aproximou-se vagarosamente do indivíduo e, surpreendendo-o ao tentar pular o muro com seus amados patos, disse-lhe:  - Oh, bucéfalo anácrono!Não o interpelo pelo valor intrínseco dos bípedes palmípedes, mas sim pelo ato vil e sorrateiro de profanares o recôndito da minha habitação, levando meus ovíparos à sorrelfa e à socapa. Se fazes isso por necessidade, transijo; mas se é para zombares da minha elevada prosopopéia de cidadão digno e honrado, dar-te-ei com minha bengala fosfórica bem no alto da tua sinagoga, e o

Resistência do amor em tempos sombrios

Terceiro e último livro de uma trilogia que a escritora gaúcha iniciou com A casa das sete mulheres, o volume Travessia encerra a Trilogia Farroupilha com um personagem que, no dizer da autora, é comum a toda a história: Garibaldi, este carismático personagem que aparece no início do primeiro livro, quando principia um amor platônico com a meiga Manuela, a filha do Bento Gonçalves. Mas como já acompanhamos nos volumes anteriores, a família da moça não compactua com o romance, impedindo, pois, o contato de ambos. Se no primeiro livro a escritora se atém a contar a história da família concomitante à Revolução Farroupilha, tendo como cenário a Estância da Barra, a casa na qual ficaram 7 mulheres da família de Bento Gonçalves, no segundo volume já temos como plano histórico a Guerra do Paraguai, além de mudar a perspectiva para o romance de Giuseppe e Anita, a mulher atemporal que provoca uma paixão no general e guerreiro italiano. Ana Maria de Jesus Ribeiro, ou Anita, sempre dava um

De Clarice Lispector para Tania Kaufmann

Conforme eu tinha anunciado ha meses, o blog Papos Literários divulgará com frequência uma série de cartas famosas do mundo da literatura ou da música. Hoje trago na íntegra a carta de uma das escritoras mais queiridinhas dos brasileiros, além de ser famigerada nestes tempos de facebook ee twitter. Confira a f amosa carta de Clarice para a sua irmã Tania Kaufmann. Clarice em sua árdua tarefa de escrever _____________________________________________ A Tania Kaufmann Berna, 6 janeiro 1948 Minha florzinha, Recebi sua carta desse estranho Bucsky, datada de 30 de dezembro. Como fiquei contente, minha irmãzinha, com certas frases suas. Não diga porém: descobri que ainda há certas frases suas. Não diga porém: descobri que ainda há muita coisa viva em mim. Mas não, minha querida ! Você está toda viva! Somente você tem levado uma vida irracional, uma vida que não parece com você. Tania, não pense que a pessoa tem tanta força assim a ponto de levar qualquer espécie de vida e continuar